COMUNICACION/ES: Jesús Timoteo

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Martes, 9 de Enero 2018

João de Almeida Santos


La cuestión catalana constituye uno de los más graves problemas que se ponen no sólo a España democrática, sino a la  Unión europea. Una parte consistente de los catalanes quieren separarse de Espãna. Hay que aceptar que, desde un punto de vista democrático, trátase de una aspiración legítima que debe ser, por supuesto, accionada a través de los mecanismos procesuales propios de una democracia representativa, pues que hay que cambiar algo muy importante en el Estado-Nación español.

Y esto requiere procedimientos excepcionales, por lo menos, los que son comúnmente usados para hacer reformas constitucionales, o sea, mayorías cualificadas. Pero, esta reivindicación sucede en un país que pertenece a una comunidad política más amplia, o sea, la Unión Europea que mira a una integración política más allá de los Estados nacionales y que tenga capacidad de constituirse como un fuerte protagonista mundial con una clara identidad política. O sea, España pertenece a un espacio político que mira a superar la lógica de Westfalia a través de la construcción de una democracia supranacional, la primera de siempre, para responder a los retos que la globalización pone a todos los que ambicionan afirmarse como protagonistas mundiales.

A estos retos no es posible responder con el nacionalismo, pero es posible encontrar formas de organización del Estado compatibles, por ejemplo, con una forma política (de tipo federal) que corresponda a las expectativas de los catalanes y otros, manteniendo, sin embargo, la unidad territorial de España, o sea el principio que acompaña siempre, en la política democrática, el principio del derecho a la autodeterminación.


Con este ensayo intento clarificar las premisas que tienen que ser observadas por los protagonistas políticos españoles si quieren no sólo garantizar paz y estabilidad para España, sino un futuro para la Unión Europea. 

A questão catalã constitui um dos mais graves problemas que se põem não só à Espanha democrática, mas também à União Europeia. Não se trata de terrorismo ou de insurgência armada, mas sim da reivindicação política e pacífica de independência de um território de Espanha, no seio de uma União Europeia que tem vindo a caminhar progressivamente para um espaço político supranacional, com moeda única e sem fronteiras, dotado de um Parlamento Europeu e de órgãos próprios de governação, de uma carta dos direitos fundamentais e de poder judicial, constituindo porventura a experiência política mais avançada que o mundo conheceu até hoje. Pois bem, neste espaço político, e em contratendência, tem vindo a manifestar-se na Catalunha uma espécie de regresso, não ao futuro, mas aos primórdios de Vestefália, num quadro político-jurídico cheio de equívocos. É esta questão que analiso neste ensaio.
 
Autodeterminação e liberdade
 
Começo por uma longa citação de um artigo do escritor espanhol Javier Marías (“Las palabras ofendidas”), porque me parece um correcto retrato da questão catalã, que tanto está a preocupar a Espanha e a União Europeia: 
 
“Un país con un autogobierno mayor que el de ningún equivalente europeo o americano (mayor que el de los länder alemanes o los estados de los Estados Unidos), que lleva votando libremente en diferentes elecciones desde hace casi cuatro décadas, a cuya lengua se protege y no se pone la menor cortapisa; que es o era uno de los más prósperos del continente, en el que hay y ha habido plena libertad de expresión y de defensa de cualesquiera ideas, en el que se vive o vivía en paz y con comodidad; elogiado y admirado con justicia por el resto del planeta, con ciudades y pueblos extraordinarios y una tradición cultural deslumbrante…; bueno, sus gobernantes y sus fanáticos llevan un lustro vociferando quejosamente “Visca Catalunya lliure!” y desplegando pancartas con el lema “Freedom for Catalonia”. Sostienen que viven “oprimidos”, “ocupados” y “humillados”, y apelan sin cesar a la “democracia” mientras se la saltan a la torera y desean acabar con ella en su “república” sin disidentes, con jueces nombrados y controlados por los políticos, con la libertad de prensa mermada si es que no suprimida, con el señalamiento y la delación de los “desafectos” y los “tibios” (son los términos que en su día utilizó el franquismo en sus siempre insaciables depuraciones). Se permiten llamar “fascistas” a Joan Manuel Serrat  y a Isabel Coixet  y a más de media Cataluña, o “traidor” y “renegado” a Juan Marsé. Ninguno debería amargarse ni sentirse abatido por ello: es como si los llamaran “fascistas” las huestes de Mussolini. Imaginen el valor de ese insulto en los labios que hoy lo pronuncian”[[1]]url:#_ftn1 .
 
 
A Catalunha é, de facto, uma região livre, dotada de autogoverno, no interior de um importante país democrático! Mas, pelos vistos, isto não basta a uma parte importante de catalães, talvez dois milhões, que assumem como sua legítima aspiração maior autonomia como se a região fosse uma colónia esmagada nos seus direitos por um país opressor! Sendo legítima a aspiração, os pressupostos em que ela assenta não são verdadeiros nem legítimos, por uma razão: a Espanha é uma democracia representativa e funciona com as regras de um Estado de direito democrático com instituições políticas representativas fundadas no sufrágio universal!

Mas, acrescenta Marías, no depoimento sofrido de quem viu seu pai, o filósofo Julián Marías, preso político e proibido de ensinar na Universidade, no tempo de Francisco Franco: dizer o que dizem ofende os que verdadeiramente nunca votaram, os que vivem ou viveram sob ditadura, os que lutaram e sofreram pela liberdade, os que não têm casa nem pão, os que não podem cuidar do seus filhos nem educá-los. Compreendo a posição de Marías e estou de acordo com ele. Na verdade, esta chamada luta pela liberdade contra a opressão parece ter mais o sabor de uma farsa, de um nacionalismo retrógrado e de um erro histórico, contrários à tendência evolutiva da história, do que de uma genuína visão política de futuro. Compreendo, pois, as palavras de Marías porque conheço, por experiência pessoal, a diferença entre viver em ditadura e viver em democracia, mesmo com todos os seus problemas, insuficiências e erros.
 
Encapsular o futuro no passado!
 
Lêem-se por aí muitas fundamentações históricas do direito à autodeterminação, na perspectiva de um Estado-Nação, da Catalunha. Há razões históricas, sem dúvida. Como há para a Galiza ou para o País Basco. Ou para a Bretanha. Para o Veneto, o Alto Adige ou a Lombardia. Ou para a Comunidade flamenga, na Bélgica. Ou para o Schleswig Holstein, na Alemanha.  E por aí adiante. Mas essas razões não resistem a uma análise política e histórica dos tempos que estamos a viver na Europa e no mundo. Porque a história não se constrói às arrecuas e em grande velocidade em direcção ao passado ou como mero memorial político levantado aos antepassados e assumido como a alavanca de um futuro que, no essencial, já não está inscrito nas razões antigas pela simples razão de que a força e a velocidade desse futuro tem vindo a acelerar as exigências urgentes do presente. O que temos, na verdade, diante de nós é, afinal, uma política “victimista y retrorromántica”, como alguém lhe chamou. E é por isso que os memoriais não servem para construir o futuro, mas sim para lhe transmitir identidade simbólica e promover um sentimento de pertença e coesão. Permanecendo no domínio do simbólico. Mas, às vezes, os memoriais, em vez de promoverem a identidade, acabam por criar divisão e separação. E, na verdade, nestes movimentos memorialistas, mais do que a afirmação de uma identidade, o que tende sempre a irromper é algo profundamente nostálgico, sentimentos radicais de diferença em relação ao outro, mesmo quando os ventos da história sopram em direcção ao futuro e correm atrás de mais igualdade, mais convergência e mais integração. Ora a identidade também se pode reconstruir a partir do futuro, quando o projecto for visionário e consistente. Certamente, pois não se constrói futuro encapsulando-o no passado, a pretexto da recuperação de uma qualquer identidade perdida nos confins do tempo e com valor puramente simbólico.

Também se lêem hinos ao direito à autodeterminação dos povos. Quem contesta? A ONU tem doutrina fixada sobre a matéria. Autodeterminação justifica-se sobretudo quando há opressão externa. Não aplicável, por isso, a este caso. E também é verdade que a autodeterminação tem várias formas e gradações - sem que assuma necessariamente a forma de secessão - que podem ir até ao Estado federal. A Espanha é, como diz Marías, uma democracia com políticas de autonomia muito avançadas, sendo naturalmente neste registo que o problema das identidades étnicas, linguísticas e culturais deve ser politicamente resolvido. Um quadro constitucional como o espanhol – ou redesenhado constitucionalmente por acordo entre as forças políticas - pode muito bem funcionar como “chapéu” institucional que acolha no seu seio identidades muito diferenciadas e em interacção. A democracia é amiga da diferença, precisamente porque a respeita.

Mas vêem-se também os mesmos de sempre a falar da opressão capitalista do Estado espanhol ou da Monarquia sobre a República da Catalunha. O mote aqui é o da opressão capitalista de uma região que, dizem alguns, subsidia um país inteiro. Acontece que a Catalunha é livre, vive em economia de mercado e é governada por instituições democráticas livremente eleitas que, no seu ideário, têm inscritas as palavras solidariedade e coesão.

Na verdade, a questão de fundo centra-se na relação entre a Catalunha, a Espanha e a União. E, neste quadro, não é possível deixar de referir o efectivo estatuto de autonomia de que goza ou até de um futuro estatuto federal que possa vir a ser negociado e inscrito na Constituição de Espanha. O que aconteceria se todas as autonomias reivindicassem o mesmo? E se, depois, o fenómeno se expandisse com mini-Estados a pulular por essa Europa fora? O mapa já circula por aí e não é bonita de se ver esta gigantesca fragmentação. Se a União a 27 já é complexa o que seria com, por exemplo, 40 Estados? É sensato que, num espaço como este, construído com esforço, imaginação e ambição sobre a ideia de paz, continuemos a assistir ao lamentável espectáculo de uns a unir e outros a dividir? Em plena globalização? De uns a integrar e outros a desintegrar? Como se a fragmentação fosse a boa resposta a uma globalização que ameaça constantemente com uma dominadora lógica globalitária, com potentados económicos ancorados em dumping de concorrência feroz e imparável! Como se a ordem de Vestefália ainda fosse a ordem do futuro e como se a lógica do Estado-Nação fizesse, para os catalães, tábua-rasa da experiência de uma democracia supranacional em lenta construção na Europa da União!
 
Regresso a Vestefália?
 
Cito Javier de Lucas, professor de Filosofia do Direito e Filosofia Política na Universidade de Valência, num longo estudo sobre a questão catalã:  
 
“Lo más importante, a mi juicio, es que en uno y otro caso se comete la torpeza de utilizar una noción de soberanía que, como ya he calificado parafaseando a Beck, sería una categoría zombie, pues, como ya he recordado, responde al modelo creado por Bodin y Hobbes, absolutamente improcedente en el contexto del mundo globalizado y aún más en el marco de la UE. La soberanía ya no es una propiedad o atributo exclusivo ni absoluto del Estado nacional, ni en el orden político, ni en el económico, ni en el cultural. Y pretender por tanto resolverla en los términos del viejo orden de Westfalia, defendiendo o (re)inventando Estados nacionales según ese modelo resulta no sólo inadecuado sino incluso contrafáctico en el primer tercio del siglo XXI”[[2]]url:#_ftn2 .
 
Sim, aqui reside um ponto decisivo deste processo. Promover radicalmente o nacionalismo no interior de um espaço político que vem evoluindo em sentido contrário (mas ao qual declaram querer pertencer) e, ainda por cima, no interior de um espaço político (a Monarquia Parlamentar espanhola) que contempla uma profunda autonomia política, institucional, cultural, linguística e económica chega a ser profundamente paradoxal, ao mesmo tempo que retrógrado e até irresponsável, porque desestabiliza, divide (interna e externamente) e exclui, provocando um autêntico terramoto económico e financeiro na Catalunha e em Espanha (são inúmeras as empresas que já deslocaram a sua sede da Catalunha). 

E acontece que na União a que querem pertencer, afinal, já existe uma moeda única e não há fronteiras. Ou seja, querem ir para um mundo sem fronteiras construindo muros. Além disso, muitas das competências já transitaram para a União. De facto, trata-se de uma Europa que, abrindo o espaço político em que se inscrevem os Estados nacionais, procura evoluir para uma cidadania europeia, constituindo-se como um espaço mundialmente influente, mas que em nada se sobrepõe às identidades nacionais. Bem pelo contrário, este desenho até pode favorecer as identidades nacionais e regionais, dando-lhes uma expressividade política, que antes não tinham, à escala mundial.

O independentismo é, assim, um movimento que vai às arrecuas e que contraria o projecto europeu.

“Verfassungspatriotismus”, patriotismo constitucional é algo que pode ser adoptado à escala europeia e precisamente como garante das identidades nacionais e regionais. Este conceito abre a cidadania a uma escala supranacional, ancorando-a nas grandes cartas de princípios que a humanidade acolheu como universais, mas por isso mesmo ele integra melhor no seu seio, legitimando-as e reforçando a sua dimensão cívica, as identidades regionais, étnicas, religiosas ou nacionais. Para tanto, basta que se verifique um efectivo “patriotismo constitucional”, adesão e respeito pelas normas e valores constitucionais[[3]]url:#_ftn3 , quando, à escala da União, se puder falar finalmente de uma Constituição. Trata-se de um mundo que se abre ao futuro sem rejeitar o passado, enquanto estes movimentos nacionalistas querem abrir-se ao passado, fechando-se a um futuro que parece desconhecerem.

Além disso, a Espanha, sendo um País que precisa de uma unidade política reforçada, e não diminuída, possui uma identidade muito precisa, pela língua, pela cultura, pela música, pela comida... por uma muito consistente e poderosa “hispanidad” (Miguel de Unamuno) que, mais do que fragmentar, tende a unir sob o tecto da língua e de afinidades culturais!

Não faz sentido, pois, hoje este nacionalismo que cria mais problemas do que os que  resolve, divide e separa o que estava unido e vai em sentido contrário ao movimento da história e a uma lógica de integração política europeia. Mais: agita demónios que não conviria acordar. Deve-se lembrar que a CECA, no início dos anos ’50 do Século passado, foi criada para unir antigos beligerantes, tomando como ponto de partida precisamente a programação conjunta da gestão económica dos materiais usados na guerra, o carvão e o aço. Guerra que resultou da fragmentação da Europa e não da união dos seus povos.
 
A Catalunha, a Espanha e a União
 
Dir-me-ão os mais radicais: mas se os catalães quiserem a independência têm toda a legitimidade para fazer um referendo e aprovar uma constituição para um novo Estado-Nação! Uma tal vontade deverá ter em conta o contexto em que a querem afirmar. Em primeiro lugar, a Espanha e, depois, a União Europeia. Em Espanha, a Catalunha dispõe de órgãos de governo próprios legitimados pela Constituição de 1978, numa autonomia profunda e susceptível de ser ainda alargada - desde que no quadro constitucional, como disse - até ao nível federal. Mas a verdade é que o contexto também é uma variável e conta tanto como a tradição reivindicada de autonomia. O contexto é territorial, cultural, linguístico, económico e político. E internacional. A Catalunha não vive num vácuo onde possa afirmar a sua vontade de forma absoluta. Vive, desde logo, num espaço geográfico concreto onde se fala espanhol, numa economia interligada (veja-se o vai-e-vem das empresas), num pano de fundo cultural que é hispânico, num espaço político que é espanhol e europeu e num mundo global que funciona por blocos (veja-se o caso das negociações do Reino Unido com a União sobre o mercado único, um potente bloco económico). Os catalães têm de metabolizar o fluxo da história e esse não parece ser muito de feição para retrógradas aventuras nacionalistas no interior de um espaço que precisa mais de integração do que de desintegração ou fragmentação. E eu creio que a questão é tão simples que até o bom senso a resolveria se não houvesse irracionalismo a determinar este processo. Aliás, começo a ver com preocupação o que poderá vir a acontecer em Itália, um país com um Estado unitário recente, dos anos ’60 do século XIX, e onde já começam a surgir movimentos autonomistas que poderão, amanhã, vir a ter pretensões que vão muito para além da reivindicação do estatuto de regiões especiais ou “a statuto speciale”, como a Lombardia ou o Veneto, por exemplo. Veremos o que ainda acontecerá ao Reino Unido com a saída da União Europeia. E com a Escócia. E trata-se de um Estado soberano e poderoso. Decisão verberada pela maioria dos europeus, considerada má para o Reino Unido e má para a União. E, porventura, agora já também pela maioria dos ingleses.
 
A União Europeia e o mundo
 
Estou a falar de uma realidade substantiva e não de uma mera construção intelectual. O “adquirido” pela União é gigantesco, apesar das actuais dificuldades. Vejamos[[4]]url:#_ftn4 . A Europa foi beijada pela paz, sua ideia inspiradora. Para que conste: dezenas de milhões de mortos nas duas guerras mundiais! É a maior potência comercial e o maior mercado único do mundo. Com poucos anos de vida, o euro tornou-se a segunda moeda mundial, 30% contra 43% do dólar USA, impedindo que os USA determinassem, sozinhos, directamente, através da moeda, a economia mundial. Compreende-se, por isso, o ataque cerrado contra o euro por parte dos velhos poderes financeiros internacionais, com a preciosa ajuda das três agências de rating. É o segundo PIB mundial, com 22% (contra 24% dos USA). Dois terços dos europeus querem estabilidade na União, 80% defendem as quatro liberdades (livre circulação de pessoas, bens, capitais e serviços) e 70% defendem o euro. Depois, 1,7 milhão de pessoas da União desloca-se para outro Estado-membro por razões de trabalho ou de estudo. Sendo demograficamente preocupante (em 2015 a União exibia 6% da população mundial, quando, em 1960, exibia 11% e, em 1900, 25%), é, ao mesmo tempo, um bom indicador da evolução civilizacional da União ter uma idade média de 45 anos (projecção para 2030), possuindo um dos mais avançados Estados Sociais do mundo. É um espaço de 500 milhões de pessoas em 400 milhões de quilómetros quadrados. Líder (com 40%) nas tecnologias das energias renováveis e nas “cidades inteligentes, a União possui um alto índice de desenvolvimento tecnológico e informacional.

Ou seja, a União tem todas as condições para se tornar um espaço de influência mundial muito relevante e para influir, enquanto tal, decisivamente no processo de globalização, dando voz mundial aos seus Estados-Membros, desde que consiga firmar uma robusta e eficiente organização institucional.

É deste espaço que a Catalunha quer sair? É esta força que quer contrariar com a sua involução nacionalista? É a fragmentação da Europa que quer promover, consciente ou inconscientemente? Na verdade, do que se trata verdadeiramente é de nacionalismo – de esquerda e de direita – de fechamento, num mundo que, com a globalização, se está a tornar cada vez mais aberto, interdependente e competitivo, com grandes blocos económico-financeiros em acção e em condições de imporem lógicas que os países singulares, mesmo os maiores, já não estão em condições de travar.  É isto que querem? Podem dizer que não, mas é isto mesmo que, na realidade, estão a promover.

É claro que há muitos que alinham nesta aventura, à esquerda e à direita, sobretudo os nacionalistas e os que nunca viram com bons olhos o processo de integração europeia. Não me revejo neles, até porque não penso assim e, tendo vivido muitos anos em três países europeus (Alemanha, Bélgica e Itália), sei muito bem o que pude retirar desta extraordinária experiência. E, por isso, por mais esforço que faça para entender os independentistas catalães, não consigo. Duma coisa estou certo: não os entendo, mesmo sendo um militante da causa da liberdade, da democracia e da autodeterminação dos povos. E sublinho o que disse Javier Marías (e, já agora, em homenagem a seu pai): a conversa sobre liberdade destes autonomistas sabe-me, também a mim, a ofensa aos que, de facto, nunca souberam o que é a liberdade e a democracia porque sofreram ou sofrem permanente repressão no corpo e na alma, perpetrada por miseráveis regimes ditatoriais.

Mas a verdade é que temos um problema muito sério em Espanha, visto que a Constituição espanhola, no seu artigo 2, proíbe a secessão:
 
“A constituição fundamenta-se na indissolúvel unidade da Nação espanhola, pátria comum e indivisível de todos os espanhóis”.
 
 
Felipe González disse que esta é a mais grave crise que Espanha vive desde há 40 anos. O processo de injunção das forças de segurança para travar a realização do referendo e levantar minuciosos autos acabou por acontecer e por criar mais ruído num problema que já é muito sério. A independência foi reivindicada por uma parte importante dos catalães e das suas instituições. Mas a verdade é que o referendo foi ilegal, ilegítimo, trapalhão e inconcludente!

Todavia, este processo lembra o que aconteceu com a Escócia em 2014, tendo a maioria dos escoceses (cerca de 55%) rejeitado a independência, num referendo. Mas houve referendo, fruto de negociações entre Londres e Edimburgo. E não há razões para pensar que Londres seja menos centralista do que Madrid e de que a Escócia não tenha raízes históricas que possam fundamentar uma independência. Fez, pois, bem Londres em negociar, pois, assim, pôde, no terreno da democracia, derrotar o independentismo. A actual Primeira-Ministra Nicola Sturgeon deve ter tomado em boa consideração o que aconteceu no referendo sobre a independência, por ocasião de um Brexit que o actual Mayor de Londres, Sadiq Khan, segundo o “Independent”, admitiu poder vir a ser submetido a novo referendo (“Sadiq Khan suggests Labour may back second referendum on Brexit”). Processos desta dimensão devem sempre ser metabolizados com tempo pela cidadania! E o tempo é uma das variáveis fundamentais dos procesos democráticos…

Na verdade, há muito que se sabia desta tendência na Catalunha e, por isso, poderiam ter sido desenvolvidas consistentes negociações sobre o assunto, com vista a evitar o pior. Lembro-me que um dos principais entraves a um acordo de Pedro Sánchez e do PSOE com PODEMOS foi precisamente a posição deste a favor de um referendo. Teria Pablo Iglesias razão? Talvez não, uma vez que não se notou verdadeiramente vontade de promover a negociação que seria necessário desenvolver.

Mariano Rajoy, entretanto, agiu como se tratasse de uma simples infracção legal, de uma ilegalidade, ainda que tocasse o nervo central da Constituição espanhola. Ouvi-o dizer com firmeza e dentes cerrados: “España es muy fuerte!”. E o tom e as palavras não me deixaram quaisquer dúvidas sobre a linha de firmeza que iria seguir. Talvez estivesse a pensar nos mortos que o independentismo basco provocou ao longo de décadas até sair finalmente da agenda política. Certo, mas este é um processo de novo tipo e com uma consistência política mais robusta e ainda mais perigosa para a unidade de Espanha. Dir-se-ia, em linguagem popular, “se a moda pega...”, o que se seguirá? Por exemplo, na Galiza ou no País Basco!

No dia 26.09.17, numa conferência, Felipe González, referindo-se a este processo, disse que não se importaria de alterar quer o Estatuto quer a Constituição, mas disse também que não respeitar a lei não é democrático e que o conflito entre duas legalidades pode fazer ressuscitar o fantasma das duas Espanhas, de franquista memória. O seu apelo a que parassem para pensar - sendo que, depois, “parlarem” - foi de enorme sensatez e teria sido bom que fosse ouvido. Ou que seja ouvido, agora, depois das eleições de 21 de Dezembro!

A força nunca foi boa solução política para nada e o processo foi seguramente mal conduzido pelo Partido Popular. E não só agora, porque antes já o tinha sido. Sabemos que estes processos secessionistas tradicionalmente acabaram sempre em conflito armado interno. E Espanha já conheceu graves conflitos internos, de forma bem dramática. Os tempos são outros, sem dúvida, mas o perigo de irrupção política de uma Espanha mais intolerante é real. Não vejo como é que o problema se possa resolver sem uma solução política. Mas ficará cada vez mais difícil se as posições se cristalizarem, gerando provavelmente, na Catalunha, um sentimento de união mais forte e alargado do que o que antes existia, desencadeando a lógica do cerrar fileiras perante o inimigo externo! Se a razão estiver do lado de Madrid, então a abertura, a tolerância e a flexibilidade deverão ter aqui o seu maior aliado. E a definição da estratégia não poderá ficar nas mãos de um partido, o PP, que já deixou há muito de a poder gizar, tantos foram os erros acumulados.
 
O problema catalão e a imprensa internacional
 
Fiz uma pequena viagem pelas primeiras páginas (em suporte digital) de alguns dos mais importantes jornais mundiais, New York Times, Le Monde, Corriere della Sera, La Repubblica, Frankfurter Allgemeine, The Guardian, e, curiosamente, o caso catalão, a 5 dias do referendo, não ocupava a agenda destes jornais. E não deixa de ser estranho, vista a gravidade da situação e os perigos que Espanha enfrenta. Vi também o “Público” e o Diário de Notícias”. No primeiro, apenas um artigo do eurodeputado Paulo Rangel; no segundo, dois artigos e um de opinião. Mas na grande imprensa mundial não houve, de facto, artigos sobre o assunto. O que não deixa de ser estranho!

A questão é grave, de facto, e, quanto a mim, ela também traduz algum défice de mundividência hegemónica, no sentido ético-político e cultural, capaz de funcionar como colante da sociedade espanhola, promovendo a coesão política nacional ao mesmo tempo que acolha as robustas componentes identitárias das várias regiões ou nacionalidades espanholas, numa dialéctica reciprocamente enriquecedora. Na verdade, a questão da hegemonia, no sentido gramsciano, faz cada vez mais falta no pensamento político contemporáneo e na própria política democrática. Mas traduz também alguma insuficiência do modelo político-constitucional espanhol. Depois, num outro plano mais vasto, talvez também falte uma cultura que possa promover uma cidadania europeia robusta assente naquilo que Habermas designou por “patriotismo constitucional”, perfeitamente compatível com as várias identidades nacionais ou regionais.

Em tempos, há vinte e cinco anos, num ensaio intitulado “Memorial para uma Democracia Europeia”[[5]]url:#_ftn5 , inspirado na visão do então Presidente do SPD, Bjoern Engholm, abordei este assunto, enfatizando a ideia de que seria preciso compensar a perda de soberania dos Estados-Nação na Europa com o reforço político das grandes regiões europeias, tendo como base a ideia de que um Senado das Regiões poderia resolver muitos dos problemas autonomistas já então em curso. Escrevi então: “Isto para não falar da nossa vizinha Espanha onde, por exemplo, o potenciamento da geografia regional europeia em detrimento da geografia nacional poderia ser a via resolutiva das aspirações autonomistas, por exemplo, do País Basco ou da Catalunha”. Uma identidade política mais forte (no plano interno e no plano da União) e sedutora e, por isso mesmo, mais flexível (designadamente no plano constitucional), poderia atenuar as tendências centrífugas ou autonomistas. A ausência de um forte referente polarizador, à escala europeia, liberta tendências centrífugas que podem conduzir ao nacionalismo ou mesmo ao regionalismo. E este é, de algum modo, um dos grandes problemas da União.

O projecto europeu tem, pois, aqui também as suas responsabilidades. Mas, mesmo assim, num espaço político como o da União Europeia, sem fronteiras e com uma moeda única, as aspirações dos independentistas perdem densidade porque de algum modo representam um processo que evolui em sentido contrário ao da integração política europeia, uma vez que o nacionalismo não é amigo do processo de integração federal para o qual, no meu entendimento, terá necessariamente de evoluir a própria União. E mais densidade perderiam, ainda, se esta região de Espanha viesse a ter, no processo de integração, uma presença significativa nesse Senado europeu que hoje tantos já voltam a defender. De resto, os Senados existem para isto mesmo: integrar, representando ao mais alto nível político, identidades colectivas ou territoriais. A integração política ao mais alto nível das grandes regiões europeias ajudaria, no meu entendimento, a evitar estas tendências centrífugas, hoje mais animadas como reacção ao processo de globalização mundial.
 
“No me gusta hacer política amparándonos bajo las togas”!
 
Não quero pôr em causa a visão ideológica de Rajoy e do PP, talvez demasiadamente ancorada numa visão autoritária, nacionalista e tradicionalista da política, como também não o faço relativamente ao PSOE, que foi incapaz de promover com sucesso uma solução política da questão, por se ter colado excessivamente à posição de Rajoy e do PP. Mas não deixa de ser curioso que, neste processo, talvez o PODEMOS tivesse alguma razão ao defender a proposta de um referendo, desde que naturalmente viesse a ser objecto de decisões políticas de compromisso e enquadradas constitucionalmente, entre Madrid e Barcelona, tal como aconteceu entre Londres e Edimburgo. De resto, é para isto mesmo que serve a política. Na verdade, não se trata de uma simples infracção à lei, de uma simples ilegalidade, porque é uma questão de natureza política e de grande dimensão, devendo ser como tal tratada. Subscrevo, por isso, e por inteiro, as palavras de Felipe González quando diz, referindo-se certamente à transferência do problema para o poder judicial, que “no me gusta hacer política amparándonos bajo las ‘togas’", prática que começa a estar preocupantemente generalizada um pouco por todo o lado e que começa a funcionar como a arma branca da política que quer resolver problemas de forma oculta por não conseguir resolvê-los politicamente à luz do dia e de forma claramente assumida. Os assuntos políticos devem sempre ser tratados politicamente e o uso da força (ainda que sob a forma de lei) só agiganta os problemas.

O que preocupa é que o funcionamento da política em Espanha não tem vindo a dar provas de muita maturidade, se olharmos para o tempo em que, ainda recentemente, este fantástico País esteve quase um ano sem um governo em plenas funções e se reflectirmos sobre o que agora está a acontecer na Catalunha.
 
Autodeterminação
 
A questão da autodeterminação não é nova. Ou talvez seja, nos moldes em que está a ser posta. Mas é uma questão difícil e controversa. Quando se pôs, foi sobretudo na ordem colonial ou da opressão externa. Mas também houve (e há) movimentos que reivindicaram a autodeterminação na ordem interna.  E quando foi reivindicada aconteceu quase sempre por via armada. O que é novo, pois, na recente questão catalã é a sua forma e o contexto: uma ordem constitucional democrática, votada consistentemente pelos cidadãos, integrada num contexto internacional que se aproxima de uma ordem democrática supranacional (a União Europeia); uma parte significativa da população de uma região autónoma que quer tornar-se Estado independente por via pacífica e democrática, mas em contraste com a ordem constitucional do País.

O conceito remete para a Carta das Nações Unidas (1945) e é aplicável às situações de autodeterminação em contexto de domínio colonial. Mais tarde, o conceito alargar-se-ia, juntamente com outro dispositivo normativo: o do respeito pela integridade territorial de Estados. E também sempre esteve associado aos conceitos de povo, de nação e de soberania. E sabemos que, neste caso, a posição a definir deverá estar enquadrada por valores de natureza democrática, reivindicados por ambos os lados.

A primeira grande questão refere-se ao Estado e à determinação do princípio de soberania, indissociável dos conceitos de povo e de nação. E está enquadrada por uma clara distinção entre autodeterminação interna e autodeterminação externa. E admitindo desde logo que, em princípio, a situação actual poderia ter sido evitada se se tivesse consolidado o reforço da autonomia da Catalunha, como decidido em 2006, após negociações conduzidas por Rodríguez Zapatero, ou então avançado para uma via de tipo federal - ambas soluções racionais no âmbito de uma lógica negocial sobre o normativo constitucional, que nunca poderia, neste caso, deixar de enquadrar a questão da autodeterminação. Não vejo, de resto, outra solução para o caso da Catalunha que não seja a de uma solução de tipo federal, que integra uma visão moderada de ambos os lados: (a) porque garante a unidade do Estado espanhol e  (b) porque dota a Catalunha de um autogoverno com capacidade institucional e política para exprimir os desejos de afirmação da personalidade catalã em todas as frentes. E se a isto acrescentássemos a existência de um Senado europeu, representativo de realidades como esta, teríamos a resolução de um problema tão difícil quão perigoso. E uma boa solução do problema evitará que uma perigosa caixa de pandora se abra em Espanha e na União, com consequências desastrosas para todos.

Na questão da autodeterminação há sempre os dois lados da moeda. Fixemos a questão no interior de um enquadramento democrático, como é o caso de Espanha. De um lado, uma parte consistente de catalães, do outro, os restantes espanhóis. Partindo da afirmação absoluta de uma ética da convicção, bastaria aos independentistas afirmarem o seu desejo de se constituir como Estado independente, sem se preocuparem com o outro lado, com as suas consequências e com os procedimentos que definem o regular funcionamento de uma democracia.

O princípio da autodeterminação concede-nos esse direito, diriam, faz-se um referendo e “ya está!” Partindo da ética da responsabilidade, que não é contraditória com a ética da convicção, pôr-se-ia sempre a questão das consequências, neste caso, a relação com todos os outros espanhóis e, em particular, a questão da integridade territorial do Estado espanhol. Ou seja, entram em cena os outros, as suas convicções, os seus interesses, a sua identidade como espanhóis que não impuseram à força os procedimentos constitucionais, antes os fundando num contrato social originário.

Ou seja, não se verifica uma situação de opressão externa ou interna, sendo a Espanha uma democracia. Não estando, pois, a autodeterminação equacionada nos termos de uma lógica de conflito ou de antagonismo, muito menos armado, deverá entrar obrigatoriamente em cena o princípio da composição de interesses, da negociação, com uma condição de base: nenhum dos negociadores pode partir para a negociação com uma posição do “tudo ou nada”. Acresce que a Constituição de 1978 foi aprovada por 87,78% dos votantes e por cerca de 59% do total dos eleitores. Na Catalunha, de resto, a constituição foi aprovada por cerca de 91% dos votantes. Uma maioria esmagadora! Mais concretamente: na Catalunha, a Constituição espanhola foi votada por quase três milhões de pessoas numa região com cerca de 5 milhões e meio de eleitores. A via da composição institucional de interesses torna-se, pois, obrigatória porque é a única politicamente legítima.

Na verdade, não tendo sido revogada a Constituição, não parece ser correcto agir politicamente à revelia das normas constitucionais. Porque estas normas ultrapassam o nível de um mero ordenamento jurídico. Trata-se da Lei Fundamental do Estado onde está plasmada a vontade política de um povo constituído por várias nacionalidades e identidades regionais. E, assim sendo, um desejo de secessão em ambiente democrático deverá ter um obrigatório enquadramento constitucional. De outro modo, quem a promove sai fora das regras democráticas, que é pior e mais perigoso do que cometer simples infracções legais. Não se tratando de uma questão meramente jurídica, ela eleva-se à dimensão constitucional e política, devendo ser tratada como tal.

Julgo saber que, de facto, fora aprovada pelas Cortes (e pelo PSOE) uma reforma mais profunda da autonomia da Catalunha[[6]]url:#_ftn6 que viria a ser inviabilizada pelo PP através do envio desta reforma para o Tribunal Constitucional, que a chumbou, em 2010. Ou seja, o PP lavou as mãos, como Pilatos, de um problema eminentemente político, remetendo-o para a esfera judicial, ainda que de um Tribunal Superior. E este acabaria por decidir juridicamente uma questão que era, e é, política e que poderia ser resolvida, designadamente, através de uma alteração da Constituição. Não foi esse o entendimento do PP e agora é o mesmo PP que tem o complexo problema nas mãos, acabando também por envolver o próprio PSOE (e Ciudadanos).
 
A questão da soberania
 
Na verdade, a questão da soberania é central nesta discussão. Porquê? Porque ela está ligada à questão de saber onde reside: se no povo ou na nação. E, portanto, de quem pode declarar a autodeterminação, através de que mecanismos e com que regras. Se a soberania reside na nação, como parece ser o que acontece na generalidade das constituições de matriz liberal – e pese embora o n.º 2 do art. 1 da Constituição espanhola declare que a soberania reside no povo, de onde emanam os poderes do Estado, a sua matriz é liberal e representativa -, ela deve ser resolvida no interior dos órgãos de soberania, ou seja, através dos mecanismos previstos e dos órgãos constitucionalmente definidos. Pelo menos, em primeira leitura, sendo certo que os referendos são instrumentos de democracia directa injectados no sistema representativo e, portanto, mais próximos da ideia de que a soberania reside no povo (e não na Nação). Em qualquer caso, a constituição é o lugar onde todas as soluções para situações como esta devem ser encontradas. Até por uma razão: a alteração da Constituição exige maiorias qualificadas e até um processo de ratificação através de referendo, o que funciona como forte estabilizador político da sociedade. Nem matérias tão sensíveis como esta poderão alguma vez deixar de exigir consistentes maiorias reforçadas que garantam a necessária estabilidade do próprio sistema.
 
Uma questão política, não judicial
 
Claro que estamos perante uma questão política e, por isso, a reivindicação de independência por uma parte consistente de catalães não é susceptível de ser tratada como uma simples transgressão à lei, resolúvel através dos instrumentos previstos na lei penal. Claro que não! Mas também é verdade que se o movimento que aspira à independência se declarar democrático ele deve respeitar os procedimentos constitucionais previstos, não inventando procedimentos exteriores à constituição para obter os resultados desejados. Sobretudo quando a mesma constituição que define os procedimentos resultou da sua própria vontade, ao ratificá-la por uma maioria tão expressiva. Na verdade, o parlamento que declarou a independência é uma instituição prevista pelo  mesmo texto constitucional que não autoriza o procedimento que este mesmo parlamento promoveu e validou, enquanto assembleia legislativa e deliberativa. Isto sem referir a enorme trapalhada que foi o referendo e sem sequer se pôr, para já, a questão da percentagem de votos (no parlamento e no referendo) exigível para deliberações tão sensíveis como esta.

A questão é, de facto, muito delicada, mas se a quisermos enquadrar no interior dos procedimentos democráticos, como parece ser o caso, e pela voz dos próprios independentistas, então a via terá de ser a da negociação, no interior dos órgãos previstos para tal e sob o impulso das forças políticas em presença. O princípio que aqui parece ser dominante é o da ética da responsabilidade, não só porque egixe uma solução negociada e pacífica, mas também, et pour cause, evita perigosos confrontos num horizonte que se pode vir a insinuar como de indesejável violência. Entretanto, as eleições que ocorreram em Dezembro de 2017, no seguimento do accionamento do art. 155 e da destituição do governo regional, não vieram solucionar a questão, embora tenham determinado, como veremos agora, uma linha obrigatória de orientação.
 
Uma clarificação necessária
 
A questão da Catalunha é fonte inesgotável de ensinamentos e, por isso, deve merecer toda a atenção por parte de quem reflecte com seriedade sobre os processos políticos. E é uma questão delicada que afecta a Espanha, Portugal e toda a União Europeia. E é, de facto, muito complexa. Lembremo-nos da questão basca: enveredaram pela violência e foram derrotados. Contra a violência é simples tomar partido, porque não é justa nem humana. E porque sai do foro da política pura para entrar no domínio moral. Mas na Catalunha do que se trata é de uma questão eminentemente política, não tendo os independentistas enveredado pela violência. Pelo contrário, foi sobre Madrid que caiu a acusação, no dia do referendo. E declaram-se democratas e defensores da lei e da paz cívica. Por isso, qualquer pessoa sensata deve agarrar a questão com a lógica e os instrumentos da política democrática e do Estado de direito. E, acrescento eu, sem subsumir a política no puro exercício jurídico, sobretudo quando se está perante cerca de dois milhões de pessoas que de algum modo se identificam com os partidos que reivindicam a independência da Catalunha.

Vejamos agora a questão, tal como se põe hoje, nos seus traços essenciais, após as eleições de Dezembro de 2017.
 
A Constituição e a maioria qualificada
 
A Constituição de 1978 não prevê qualquer forma de secessão nem, naturalmente, qualquer instrumento que a regule. Bem pelo contrário, o art. 2.º do Título Preliminar determina, como já vimos, que: “La Constitución se fundamenta en la indisoluble unidad de la Nación española, patria común e indivisible de todos los españoles, y reconoce y garantiza el derecho a la autonomía de las nacionalidades y regiones que la integran y la solidaridad entre todas ellas”.

Portanto, qualquer alteração neste sentido exigirá uma modificação da Constituição, sendo, todavia, em princípio, necessários três quintos dos votos nas duas Câmaras, nos termos do art. 167. Mas, neste caso, e porque está em questão precisamente esse art. 2, ou seja, a alteração da Constituição toca num aspecto essencial do ordenamento constitucional, previsto, neste caso concreto, no Título preliminar, mas também, noutros casos, no Título I (Secção 1.ª do Cap. II) ou em todo o Título II (De la Corona), são necessários os seguintes passos para fazer uma revisão constitucional: aprovação do princípio de revisão constitucional por maioria de dois terços, dissolução das Cortes Gerais, aprovação do novo texto por maioria de dois terços das novas Câmaras e referendo sobre o texto aprovado (art. 168). Ou seja, não poderá ser feita uma alteração à Constituição se não houver dois terços que, em cada câmara, a aprovem.

Deve-se ter em consideração, na apreciação desta complexa questão política, que, em geral, os processos que afectem a unidade territorial dos Estados ou que sejam considerados  decisivos na arquitectura institucional do Estado-Nação ou estão constitucionalmente proibidos (veja-se, a título de exemplo, o art. 89 da Constituição francesa: “Aucune procédure de révision ne peut être engagée ou poursuivie lorsqu’il est porté atteinte à l’intégrité du territoire”; e, sobre a forma de governo, veja-se o art. 139 da Constituição italiana, “La forma repubblicana non può essere oggetto di revisione costituzionale”, que é igual ao da Constituição francesa, art. 89: “La forme républicaine du Gouvernement ne peut faire l'objet d'une révision”) ou, então, enquadrados normativamente com a exigência de maiorias qualificadas em revisões constitucionais que os tornem possíveis (por exemplo, em Portugal, França, Itália, Alemanha, USA, aqui, por exemplo, logo em 1787, no artigo V da Constituição).
O que pretendo tornar claro, com a referência a estes países, é que as mudanças estruturais nas sociedades democráticas exigem sempre procedimentos excepcionais que implicam alterações nas respectivas constituições. Estes procedimentos exigem consensos alargados que vão para além das maiorias absolutas simples (50% + 1). Por isso, e precisamente porque se trata de uma norma que se pode considerar tendencialmente de alcance universal, qualquer posição que não tome em consideração as razões de fundo que a sustentam, justificam e legitimam implica sair fora das regras da democracia representativa, introduzindo outras lógicas, que são sancionadas com o direito e/ou com a força.
 
Os resultados e o seu significado
 
Ora, os partidos independentistas declaram-se democráticos e pacíficos, usando os meios políticos e jurídicos para afirmarem a sua vontade de se separar de Espanha. Convocaram um referendo que, todavia, se realizou fora da legalidade e em condições impróprias. Entretanto, ganharam as eleições de 21 de Dezembro com maioria absoluta (somados os votos e os mandatos de Esquerra Republicana, de Junts per Catalunya e CUP, com 70 mandatos, mais dois do que a maioria absoluta e cerca de 2 milhões de votos contra cerca de 1 milhão e novecentos mil de C’s, PSC e PP). De notar, todavia, que cerca de um milhão de eleitores não se expressou (incluídos os votos nulos ou em branco, equivalentes a 35.404). E que o CatComú-Podem não está incluído nesta contabilidade (“El País” inclui-o no bloco não independentista). Não estava em causa um programa para a independência, mas para os representantes no Parlament e para a formação do governo.

Do conjunto destes dados resulta com clareza que, tendo ganho as eleições com maioria absoluta, numa disputa com cerca de 80% de participação (4.360.843 votos contabilizados), os independentistas perderam dois mandatos relativamente às eleições de 2015 e depois de um referendo em que se propuseram declarar a independência. Ou seja, não conheceram, nestas eleições, um movimento propulsor. Antes pelo contrario. É certo que arrecadaram, em conjunto, mais cerca de 106 mil votos do que em 2015, mas isso não foi suficiente para impedir a perda de dois mandatos, tendo, afinal, a maioria dos votos expressos (cerca de 245 mil, no total) revertido para o bloco constitucionalista. Significativa também é a perda da radical CUP, em seis mandatos (de dez para quatro) e em menos 143.142 votos. O que tem significado porque se trata do partido mais radical em termos de defesa da independência. A diferença entre os dois grandes blocos, em termos de votos, acabou, pois, por ser escassa, traduzindo-se em pouco mais de 100 mil, sobretudo se virmos a sua dimensão à luz das pretensões dos independentistas. Esta situação não lhes permite avançar com a pretensão de independência, se tomarmos em consideração aquela que é a regra de ouro do constitucionalismo de todo o mundo: a exigência de maioria qualificada para proceder a alterações constitucionais tão profundas como esta.
 
Conclusão
 
O independentismo, sendo um fenómeno politicamente tão relevante na Catalunha, não podendo, por isso, ser tratado dominantemente com a lógica e as categorias do direito penal ou sequer com as do Tribunal Constitucional, não possui, todavia, dimensão suficiente para se arrogar o direito de secessão, simplesmente porque quase metade dos eleitores catalães não a querem e um milhão não se pronunciou, porque é inconstitucional e porque é afirmada e proposta no quadro das normas e dos procedimentos democráticos. Para seguir uma via legal e pacífica os independentistas deveriam submeter a sua pretensão às Cortes Gerais, onde teriam de obter dois terços na votação para que se accionasse uma revisão constitucional.

Ora o que acontece é que nem sequer na Catalunha eles têm mais do que uma maioria absoluta simples, ao mesmo tempo que representam menos de metade dos eleitores, ou seja cerca de 47% do total da cidadania activa. E, assim sendo, o que parece ser razoável é manter o statu quo ante, com uma relevante novidade: a de que a outra (quase) metade da Catalunha quer mais autonomia do que aquela que tem. Sabemos que a actual situação se deve muito à insensibilidade política do PP, ao ter remetido para o Tribunal Constitucional o estatuto autonómico, recusado em 2010, acabando por vir a receber como boomerang a reivindicação independentista de hoje. Mas também sabemos que deixou de ser possível manter uma lógica de direito penal como resposta à sensibilidade política de cerca de dois milhões de catalães.

Por isso, se os independentistas deverão recuar nas suas posições mais radicais (reivindicação da secessão), aceitando uma resposta no quadro constitucional (actual ou modificado), também o PP deverá recuar na sua ortodoxia legalista e politicamente míope. De resto, algumas das expressões do Rei, na sua mensagem de Natal, parecem aludir a uma maior flexibilidade política no tratamento da questão catalã. E se é verdade que Madrid nunca aceitará que uma parte de Espanha se separe, também é verdade que a melhor resposta política aos problemas da autonomia só pode ser o de uma geografia constitucional mais flexível, evoluindo ou não para uma solução de tipo federal. Mas estou convencido de que uma proposta deste tipo acabaria não só por resolver a questão catalã e por agradar a (quase) todos, mas também por evitar futuras questões de autonomia nas várias nacionalidades ibéricas que integram esse grande país que se chama Espanha. A solução federal, difícil e complexa, é certo, até porque deveria aplicar-se evidentemente a toda a Espanha,  situa-se, todavia, na intersecção das duas posições antagonistas e permitiria, por um lado, preservar a unidade de Espanha e, por outro, satisfazer as pretensões dos independentistas – destes e de outros - a um nível irrenunciável. De resto, não seria o único país europeu com uma estrutura federal.
 
Notas

[[1]]url:#_ftnref1 Javier Marías, em “El País Semanal” de 22.10.17.
[[2]]url:#_ftnref2 Lucas, Javier de (2013) «Algunas falacias y errores en el debate sobre el derecho a decidir y la declaración de soberanía de Catalunya», Amnis [En ligne],  | 2013, mis en ligne le 20 novembre 2013, consulté le 24 octobre 2017. URL : http://amnis.revues.org/2052 ; DOI : 10.4000/amnis.2052.
[[3]]url:#_ftnref3 Veja-se sobre este conceito o excepcional ensaio de Juergen Habermas, Cidadania e identidade Nacional: “Cittadinanza e identità nazionale”, in “MicroMega”, 1991, n.º 5, 123-146.
[[4]]url:#_ftnref4 Dados do “Livro Branco sobre o futuro da Europa. Reflexões e cenários para a Europa dos Vinte e Sete em 2025”. https://ec.europa.eu/commission/sites/beta-political/files/libro_blanco_sobre_el_futuro_de_europa_es.pdf.
Comisión Europea COM(2017) 2025 de 1 de marzo de 2017.
[[5]]url:#_ftnref5 Finisterra, 10/11, 1992, 91-124.
[[6]]url:#_ftnref6 Ley Orgánica 6/2006, de 19 de julio, de reforma del Estatuto de Autonomía de Cataluña.

João de Almeida Santos





Editado por
Jesús Timoteo
Eduardo Martínez de la Fe
Catedrático de Periodismo en la Universidad Complutense de Madrid y Profesor Honorario en la Escuela Superior de Comunicación Social de la Universidad Politécnica de Lisboa, Jesús Timoteo es también Socio Consultor de la firma “Consultores QuantumLeap Comunicación” y Director del grupo I+D (UCM) “Comunicación / Comunicaciones”.

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João de Almeida Santos. Consejero político del Primer Ministro portugués (2005-2011), João de Almeida Santos es «Doctor Europeo» por la FCI de la Universidad Complutense de Madrid. Vive en Lisboa. Licenciado en Filosofia en la Universidad de Coimbra, donde ha sido profesor de Filosofia Política. En 1987 obtuvo la «Laurea di Dottore in Filosofia» en la Facoltà di Lettere e Filosofia de la Universidad de Roma «La Sapienza», donde ha sido tambien profesor. Ha publicado, entre otros libros, «Paradoxos da democracia» (Lisboa, 1998), «Os intelectuais e o poder» (Lisboa 1999) e «Homo Zappiens» (Lisboa, 2000). Es Profesor en la Universidad Lusófona de Lisboa

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